08 abril 2008

Becos, ecos e palavras

Preparei o tempo
para semear memória
contar estrelas, brincar com a terra
ver findar tardes e manhãs sobre a pele crispada da mulher amada.
Atravessei a noite a fugir da escuridão.
Arrastei o corpo nu e castigado
para renascer com a aurora.
Ter novamente com o dia o colóquio da paz.
Eu chorei demais, perdi demais e bebi o fel das palavras.
Eu cumpri todas as maldições dos becos.
Sou uma sala de ecos onde vozes esquecidas se perdem nas paredes.]
E antes que trancafiada, abandonei o salão da madrugada com suas portas,
móveis e janelas batendo atordoadas a querer-me de volta.
Sou eu de novo, o que não retorna!
Marcelo

18 março 2008

O Teu Riso

O Teu Riso

Tira-me o pão se quiseres,
tira-me o ar, mas não me tires o teu riso.
A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso sobe ao céu a procurar-me
e a abre-me as portas da vida
À beira do mar, no outono,
te riso deve erguer
sua cascata de espuma...
Ria da noite,
do dia, da lua,
ria das ruas
tortas da ilha,
ria deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca teu riso,
porque então eu morreria.
Fernando Pessoa

04 março 2008

Bissextias

Quem no último dia 28 de fevereiro foi ter com Pedro Galvão o encontro com o "Bissexto", seu mais novo livro de poemas, saiu de alma repleta. Eu sai hébrio, não de álcool, posto que não bebo mais, o que já faz algum tempo inclusive, mas de graça e poesia. Difícil aceitar que o país ainda não conheça um poeta de tamanha sensibilidade, apuro e arrojo na linguagem. Pedro manuseia como poucos a palavra, o tempo, a memória, os atores e suas representações trágicas e belas. Toda vez que se volta ao texto de Pedro, se volta pela primeira vez e daí ele incansavelmente fica a repassar na lembrança com os ecos das palavras reverberando na alma, plasmando-se diante dos olhos. Poesia de Pedro anda com a gente mesmo depois de lida, vai se revelando nas calçadas de Belém, em seus prédios, sua gente e depois que nos retorna nos ungi de significado. Universal, em poucos segundos, transcende continentes e épocas sem sair daqui, façanha que o tempo se encarrega de insculpir na carne e na alma do poeta. Não se chega impunemente a um livro como "Bissexto" é preciso passar por "Guerramor" é preciso "Renascer" para depois viver um "Conto Quase", para se ter uma idéia de que ser poeta, é ter no peito como Drumond o 'sentimento do mundo' Pra vocês algumas doses de alta voltagem desse poeta único.


Guerramor

Agora que morri eu ressuscito
tua carne na infinita expiação
do amor sem paraíso, desse grito

que ateia fogo ao céua em danação,
luciferinafloranadiômena
emersa em meus lençóis anjo do não

na mais nua nudez, dômina, domen-na.
domem seu corpo múltiplo, o arrepio,
domem-lhe o arfar e as ondas do abdômen na

sua fúria de amar a sangue frio,
domem-na minha fome e meu delírio
sobre a lava a escorrer neste ígneo rio:

(...)

Mas de repente a imagem nos sacode
e das trevas da treva surge o míssil
rasgendo a imensidão, estruge e explode.
E o difícil depois, o mais difícil
não é contar os mortos mas os vivos
de vidas destroçadas, o difícil

é devolver a vida a mortos-vivos,
é separar a mãe dessa cabeça,
o pai do filho aos urros vingativos

(...)

E eu te carrego ao fim da travessia
no labirinto quando cais ferida
feita de carne e sonho e agonia.

É um labirinto? Existe uma saída?
Alta esfera invisível nos governa?
Se há amor no paraíso e noutra vida

não dormirás sem mim na noite eterna.


Renascer


Esta mulher aconteceu em minha vida
quase como um quasar reacendendo um sol sem sol.
Esta mulher me deu o fio do labirinto
me ergeu do mar em sua concha de coral.
Esta mulher raiou num beco sem saída
me carregou me deu seu leite seu lençol
sua aspereza seu veludo seu instinto
e me despiu depois me amou e me deu sal.
Agora ela me lambe e pensa-me as feridas.
Então me agarra me sacode monta em mim
e me incitando a descantar solta-me as bridas.
Esta mulher raia nos raios do meu dia
ela é o começo em que renasço do meu fim.
Esta mulher, viva em meus braços, é poesia.


Gostaram? Imaginem o livro...

27 fevereiro 2008

O Inusitado sempre acontece em anos Bissextos - Eu vou! bora!


A despeito do que digam dos anos bissextos, de certo eles rendem muita poesia. Pedro Galvão artífice da poyesis desse nosso ano inusitado, acrescido de mais tempo, dilatado, esticado, estendido, e como já se não bastasse tanto "muito" ainda somos brindados com um belíssimo livro, que não poderia ter outro título senão esse Bissexto "Uma coletânea de poemas" que a exemplo de tudo aquilo que esse brilhante publicitário já realiza a frente da Nau Capitânia Galvão Propaganda, surge do outro lado, no 28º dia da criação, quinta-feira às 19:00. Na Cervejaria da Estação das Docas.


Eu vou e duvido que você vá perder!

07 fevereiro 2008

O Labirinto do Fauno: Fábula e Política em obra de arte



No último final de semana aluguei vários filmes para enfrentar a hibernação do carnaval e uma das melhores pedidas da época: Belém, sobretudo com chuva, cobertor e a companheira sempre perto ao alcance das mãos desejosas...bem, deixa pra lá. Vamos falar dos filmes. Como disse, aluguei vários, mas assiti repetidas vezes O Labirinto do Fauno de Guilhermo Del Toro, de 2006, Diretor Mexicano que só tive a oportunidade de conhecer agora essa grande obra de arte que para mim já se encontra no panteão dos grandes clássicos do cinema.



O Labirinto do Fauno é uma obra única de de fábula e política que conduz o espectador pela angústia da condição humana após "o mito da caverna" de Platão ou da "expulsão do paraíso". Em tempos de totalitarismo, como o do filme ou de globalização como de agora, em que é tão difícil falar em delicadeza, o Labirinto reafirma o humanismo e seu legado inalienável e exigente para nossa época e suas imagens por dias reiteram-se na memória tranzendo sempre um novo sentido às suas cenas pungentes e às nossas condutas diante do mundo e das gentes.



O Filme se passa na Espanha, durante a duríssima ditadura de Franco. Bem no interior do país, o cruel Capitão Vidal aguarda a chegada de sua mulher, que também é mãe da menina Ofélia, fruto de seu casamento anterior. Vidal e seu exército estão nesta região afastada da Espanha para caçar e acabar com um grupo de rebeldes que luta contra a ditadura. O Capitão também tem de se preocupar com sua esposa: ela agora está grávida de um filho seu, mas tem sérios problemas de saúde e tem de fazer repouso absoluto. No meio desse rolo todo é que está a garota Ofélia, de 13 anos, que vive aparentemente num mundo próprio, mas que está intrinsecamente ligado ao que se passa em seu dia a dia. Ser levemente avoada nem é a principal questão de Ofélia. O problema é que há um mundo inteiro, mágico, que só ela conhece e que lhe é apresentado por um Fauno. O ser fantástico - que inicialmente causa medo - explica que ela pertenceu a este lugar, que foi a princesa dali, e que pode voltar a ele se fizer três ações em um determinado tempo. E é aí que as coisas esquentam. Enquanto o Capitão Vidal toca o terror da maneira mais cruel e estúpida que uma ditadura é capaz, a menina tem de lidar com esta outra realidade e ainda cuidar de sua mãe. Tudo parece muito sofrido, mas com muito carisma e esperteza, a garota vai tentando fazer o que pode.


O que chama a atenção logo de cara em O Labirinto do Fauno é sua fotografia. No filme, o mundo em que vivemos é meio acinzentado e triste. O mundo exclusivo de Ofélia tem cores fortes e vários tons de vermelho e é repleto de seres assustadores. Há uma criatura que aparece nesse lugar que é um dos monstros mais horrorosos já criados na história do cinema. Para você ter uma idéia, esse monstrengo tem os olhos nas palmas das mãos.





Na direção de del Toro, tudo é muito bem cuidado. Os atores e figurinos são impecáveis, Ofélia é muito bem comandada além de ter talento e todos os confrontos são altamente bem desenhados, seja num mundo seja no outro. Dessa forma, há cenas de extrema violência e crueldade e também seqüências ternas e até poéticas mesmo. Assim, realidade e sonho se misturam de uma maneira incrível, onde fábula e política se encontram numa obra prima de delicadeza e magia.










21 novembro 2006

Novembro






Novembro dera à luz ao inverno
o pariu em chuvas e eletricidade
converteu em cinza todas as tardes.
Vidrou meus olhos na cor despetalada das árvores
A cidade tornou-se encanto e desmoronamento
Tenho frio e isso passa.
Passa o dia sonolento
a tarde em esquecimento,
só não passas por aqui.
Fustigo a textura
da memória o teu semblante
te quero inteira e quero nua
fugidia das ruas, camponesa das chuvas.
Me atormentas por onde tracejo,
meu passo em desajeito.
Falo só, me chamam louco
Peço notícias tuas aos moradores de rua
Um diz-me ter te avistado em algum lugar além dos mares
Outros te viram com bolas-de-gude,
planetas nas mãos.
De certo restavas distante
em algum éden lunar ou no front.
Enquanto sigo errante,
só não quedo em desespero
Da linguagem que conjugo
decifrável por nós dois, fico a indagar,
Eu aqui, você onde?...onde meu Deus!
Te quisera próxima
dizer-te ao pé do ouvido
do mundo que há pouco me dera abrigo,
conter teu arrepio e te levar daqui.
A verdade é que da época
em que nasci me pariu em melancolia
me despiu na aragem fria, me diluiu por ai.
Nesse inverno maciço e solitário,
só me resta juntar:
fragmentos de ti perdidos pela
cidade, reuni-los num quadro.
E como arte-final: esse alinhamento
de pele, esse querer-se pra sempre e esse cuidado
de não ser nada além do que um verso dado,
que só quer em troca o repouso da tua alma
no meu ser abandonado.

Marcelo

16 novembro 2006






Os olhos se despedem do horizonte
Que, por hora, alucinavam um rosto.
Neste instante, este punhado de agonia
É a verdade simples e suficiente, ela encerra o momento presente
É o que restou dos bolsos e do casaco perdidos na última esquina.

As últimas horas
Percorre rumo ao cais indefinido.
Não há medo, nem fúria.
A face tranqüila, a certeza de ter decifrado
Até o último signo a linguagem daquele corpo em pergaminho.

Ele se posiciona ante aos lábios que servem de beiral ao universo
E precipita seu corpo abismo abaixo naquela alma antiga e cataclísmica
Quer ir onde se disse não ser possível, sorver as profundezas da carne
por trás da cortina da noite e ao final blasfemar o que lhe foi negado.
Seu quinhão, sua benção e maldição.

Ele está próximo e vem reclamar os espólios
Seu legado recebido dos antepassados
Essa é a ante-véspera da prometida e eterna paixão.


Marcelo

23 outubro 2006

Por esta época crisálida

Essa última colheita de poemas, pródiga de paixão foi realizada sob imenso sentimento enamoramento do mundo e de plutão.... Quem estaria regido por ele? Ah! escorpianas, é claro.
Tenho estado taciturno quanto a isso. Penso na dádiva e dor que o signo da paixão, esse "padecer no paraíso" exerce sobre a humanidade, as forças incontroláveis e intangíveis que movimenta, a um só tempo mansas e avassaladoras, sabe-se lá com que controle. Controle? Santa ingenuidade Batman, hahahahahah e eu rindo de mim mesmo.



Por esta época crisálida.
Ela transmuta-se nas folhas que abandonam
as árvores polinizando o vento.
Ela trafega há poucos centímetros acima chão
E meus olhos colhem os passos em pequenos frascos
Onde engarrafo seu céu em firmamento.
E seu corpo é a chama de amor que queima em silêncio
Como um círio que aguarda a última cinza, até ser simples
Como um fino grão de poesia.
Até que se perverta na nova aurora desnuda da tarde
E sua pele a invejar o crepúsculo, de uma cor tão jambo
Que pacifica meu coração com acalanto.
Ela é assim na quaresma, profana em carne a se decompor
Na antevéspera da ressurreição esperada pelo outros.
Pra mim, ela é um espanto, um cataclísma, anunciando a primavera.
Na atitude de quem lança os lábios a uma nascida entrega.
Onde sou eu a te aguardar no meu abraço e ninho.
Pra delícia do seu contentamento.

O Legado dos Teus Olhos

O Legado dos Teus Olhos


O que se disse sobre os teus olhos, se disse.
Há nisso toda linguagem primordial sobre a beleza
a essência, limites e contornos que há nas palavras.
A partir de então tudo é redundância, o mais do mesmo,
ao acalanto das almas dispersas em agonia.
Deixa-me com as palavras à atualizar-me a memória e os suores
do corpo a revisitar lembranças.
Deixa comigo as palavras a brilharem em silêncio sobre o papel
A colorirem de êxtase muitos olhos
a desbotarem ante o passo infatigável do tempo.
Deixa-me a sós com todo desatino que há na solidão das estrelas.
Não desespere, tenho um plano.
De certo, a sabedoria por ofício injusta, da natureza
cuida do equilíbrio necessário á continuidade
daquilo que chamamos nós dois.

Domingo

Domingo

Ontem quando da despedida da tarde
pronunciei teu nome, pus no bolso alguns raios de crepúsculos
debruçados em meus ombros fatigados de viagem
e pus-me a colher os rastros de memória
perdidos na cidade.
Era vermelha, poucos azuis despontavam ao final da tarde.
Quase nenhum dera à luz a noite, muito havia a se esperar
Mesmo num instante ínfimo de umedecer de lábios e o toque das pálpebras
Uma vida inteira, muitas vidas, aliás, nasceram e jaziam.
Prescindia-se de muito tempo aos grandes acontecimentos.
Resolvi catar ventos que prenunciavam a chuva
Ter com a poeira em redemoinho revivida da terra
um colóquio de serenidade.
Indagar-lhe de quantos solos sua vida fora feita,
só para saber de quantas muitas vidas é feita uma terra ressurgida.
Não alcancei as marquises que protegem os transeuntes
na verdade me entreguei à chuva, permiti que ela de mim,
bani-se todas as algas marinhas e restos de embarcações
trazidas dos inúmeros naufrágios que sofri.
No caminho de volta contemplei em desatino poças, córregos e inundações.
A vida em constante encontro e desintegração. Tudo fora limpo, nascido para tornar a morrer
e o mundo é um constante sendo. E o que nele acontece a mim acomete num mesmo átimo de segundo, então desaparecera a linha fronteiriça que nos separa do resto do mundo.
E cá estou com as palavras, tendo sobrevivido à criação do domingo...
Mimetizo alguém neste instante brincando com estrelas que nos olha sorrindo.