18 março 2008

O Teu Riso

O Teu Riso

Tira-me o pão se quiseres,
tira-me o ar, mas não me tires o teu riso.
A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso sobe ao céu a procurar-me
e a abre-me as portas da vida
À beira do mar, no outono,
te riso deve erguer
sua cascata de espuma...
Ria da noite,
do dia, da lua,
ria das ruas
tortas da ilha,
ria deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca teu riso,
porque então eu morreria.
Fernando Pessoa

04 março 2008

Bissextias

Quem no último dia 28 de fevereiro foi ter com Pedro Galvão o encontro com o "Bissexto", seu mais novo livro de poemas, saiu de alma repleta. Eu sai hébrio, não de álcool, posto que não bebo mais, o que já faz algum tempo inclusive, mas de graça e poesia. Difícil aceitar que o país ainda não conheça um poeta de tamanha sensibilidade, apuro e arrojo na linguagem. Pedro manuseia como poucos a palavra, o tempo, a memória, os atores e suas representações trágicas e belas. Toda vez que se volta ao texto de Pedro, se volta pela primeira vez e daí ele incansavelmente fica a repassar na lembrança com os ecos das palavras reverberando na alma, plasmando-se diante dos olhos. Poesia de Pedro anda com a gente mesmo depois de lida, vai se revelando nas calçadas de Belém, em seus prédios, sua gente e depois que nos retorna nos ungi de significado. Universal, em poucos segundos, transcende continentes e épocas sem sair daqui, façanha que o tempo se encarrega de insculpir na carne e na alma do poeta. Não se chega impunemente a um livro como "Bissexto" é preciso passar por "Guerramor" é preciso "Renascer" para depois viver um "Conto Quase", para se ter uma idéia de que ser poeta, é ter no peito como Drumond o 'sentimento do mundo' Pra vocês algumas doses de alta voltagem desse poeta único.


Guerramor

Agora que morri eu ressuscito
tua carne na infinita expiação
do amor sem paraíso, desse grito

que ateia fogo ao céua em danação,
luciferinafloranadiômena
emersa em meus lençóis anjo do não

na mais nua nudez, dômina, domen-na.
domem seu corpo múltiplo, o arrepio,
domem-lhe o arfar e as ondas do abdômen na

sua fúria de amar a sangue frio,
domem-na minha fome e meu delírio
sobre a lava a escorrer neste ígneo rio:

(...)

Mas de repente a imagem nos sacode
e das trevas da treva surge o míssil
rasgendo a imensidão, estruge e explode.
E o difícil depois, o mais difícil
não é contar os mortos mas os vivos
de vidas destroçadas, o difícil

é devolver a vida a mortos-vivos,
é separar a mãe dessa cabeça,
o pai do filho aos urros vingativos

(...)

E eu te carrego ao fim da travessia
no labirinto quando cais ferida
feita de carne e sonho e agonia.

É um labirinto? Existe uma saída?
Alta esfera invisível nos governa?
Se há amor no paraíso e noutra vida

não dormirás sem mim na noite eterna.


Renascer


Esta mulher aconteceu em minha vida
quase como um quasar reacendendo um sol sem sol.
Esta mulher me deu o fio do labirinto
me ergeu do mar em sua concha de coral.
Esta mulher raiou num beco sem saída
me carregou me deu seu leite seu lençol
sua aspereza seu veludo seu instinto
e me despiu depois me amou e me deu sal.
Agora ela me lambe e pensa-me as feridas.
Então me agarra me sacode monta em mim
e me incitando a descantar solta-me as bridas.
Esta mulher raia nos raios do meu dia
ela é o começo em que renasço do meu fim.
Esta mulher, viva em meus braços, é poesia.


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